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O próprio ato de captura do animal silvestre, assim como o transporte e o cativeiro ilegal, podem gerar diversas mazelas físicas e comportamentais, impossibilitando o retorno destes indivíduos à natureza. Fora isso, outras informações como a origem do animal, ou a existência de doenças infecciosas na região de soltura, são alguns dos fatores considerados na decisão sobre o destino dos animais traficados.

 

Quando um animal silvestre é apreendido por agentes capacitados, como Ibama, Polícia Ambiental e Corpo de Bombeiros, ou, entregue espontaneamente por civis, primeiro ele é levado para o Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) mais próximo. O CETAS fica responsável pela recepção, identificação, marcação, triagem, avaliação, recuperação, reabilitação e destinação.

 

Após a avaliação realizada por biólogos e veterinários, alguns destes animais podem ser transferidos para Áreas de Soltura Monitoradas (ASM) para serem reintegrados à natureza,desde que esses ocorram naturalmente na região. Os demais animais, que precisam de cuidados adicionais, são encaminhados para a reabilitação.

 

Em alguns casos, alguns animais podem ser transferidos para instituições como mantenedores, que podem cuidar desses indivíduos por determinado período de tempo, até que ele seja incluído em um programa de soltura.

 

O tráfico impede a reintegração de inúmeros animais silvestres à natureza

 

O ato de traficar animais é uma prática extremamente cruel. A captura e o transporte dos espécimes são regados de brutalidade, e, por conta disso, muitos indivíduos resgatados tornam-se incapazes de retornar ao seu ambiente natural. Para esconder os animais durante  o transporte, os traficantes recorrem a métodos cruéis, como prender aves em garrafas plásticas, ou transportar vários animais juntos em pequenas caixas. Recorrem até mesmo à queima de olhos e outras barbaridades, para que os animais não se assustem facilmente e vocalizem, evitando assim, barulhos que possam chamar a atenção.

 

Um exemplo triste é a arara-vermelho Dodó, animal acolhido pelo Instituto Libio, que ficou cega dos dois olhos por conta de queimaduras intencionais com cigarro. Certamente, Dodó não tem chances de voltar à natureza e hoje vive junto a outra arara, cega de um olho, em um recinto adaptado à falta de visão: o teto e poleiros são baixos para que elas não se machuquem. 

Não é de se espantar que essa atividade resulte na morte de 90% dos animais, devido a traumas e estresse durante a captura, maus-tratos, transporte em condições insalubres e à falta de cuidados adequados.

 

Dos 10% que sobrevivem, muitos vivem com sequelas físicas e até traumas psicológicos. As lesões físicas provocadas pelo tráfico frequentemente impossibilitam a sua soltura, devido ao comprometimento das habilidades naturais necessárias para viver na natureza. Ainda há os aspectos comportamentais, que também tornam-se um empecilho para o retorno à vida livre. 

 

O tráfico de primatas, por exemplo, envolve, em sua grande maioria, a captura de filhotes, por serem mais facilmente domesticados. Lamentavelmente, as mães são mortas: os traficantes atiram na mãe para capturar os filhotes que ficam grudados em suas costas. Esses filhotes costumam ser sociáveis com seres humanos e, quando muito pequenos, demandam cuidados intensivos de profissionais, fazendo com que comportamentos naturais, necessários para a sobrevivência em seu hábitat, sejam perdidos ou dificultem o trabalho de reabilitação. 

 

Isso é um exemplo de “imprinting humano”. Alguns animais, especialmente aqueles que foram mantidos em cativeiro por longo período ou criados por muito tempo ,podem desenvolver “dependência” de cuidados humanos. Tal alteração comportamental prejudica a capacidade de integrar  grupos sociais da sua espécie ou desenvolver comportamentos de sobrevivência, reduzindo consideravelmente a chance de retorno à natureza. 

 

Além disso, em alguns casos, soltar animais silvestres apreendidos do tráfico na natureza pode representar um risco para a população nativa, pois podem introduzir doenças, competir por recursos ou serem predadores de outras espécies nativas. Essa questão está relacionada à capacidade ecológica de  determinada localidade em receber novos animais (suporte populacional) e as próprias interações das comunidades ecológicas. Também é preciso considerar que o habitat onde esse animal será solto, necessita ter condições adequadas e essas condições variam de acordo com sua sensibilidade: espécies mais sensíveis precisam de ambientes mais preservados e com menor pressões ambientais proporcionadas pelos efeitos da ação humana. 

 

Requisitos para soltura

 

Da pequena porcentagem de animais que são apreendidos do tráfico com vida, alguns poucos conseguem ter uma segunda chance na natureza. Por isso, além dos procedimentos clínicos e cirúrgicos, outros fatores precisam ser atendidos para realização da soltura.

 

Não há um tempo pré-determinado para a reabilitação, que pode durar de duas semanas ou até mais de um ano, como no caso de filhotes. E para cada tipo de animal existem exigências específicas, aspectos biológicos e ecológicos para serem considerados.

 

– Um fator fundamental para animais com comportamento social é a realização da soltura em bando. Animais gregários, como os primatas, dependem do grupo para conseguir forragear, reproduzir e realizar diversas atividades ligadas à sobrevivência. Portanto, é essencial que animais apreendidos de forma solitária sejam integrados em grupos e estes sejam soltos juntos. 

 

– É preciso averiguar se os animais não possuem doenças transmissíveis como a cinomose em canídeos, raiva, entre outras. Dados epidemiológicos são muito importantes para evitar o alastramento de surtos e epidemias. Em relação aos primatas, a epidemia de febre amarela de 2017 foi um fator que impactou a soltura de grupos de bugios. Segundo pesquisadores do Refauna, o projeto Reintrodução do Bugio no Parque da Tijuca foi interrompido em 2017, e retomado em 2020 quando os macacos tinham enfim sido vacinados contra a doença. Vale lembrar que os vetores da Febre Amarela são os mosquitos Haemagogus e Sabethes.

 

– O grau de domesticação (imprinting humano) é outro fator importantíssimo a ser analisado nos candidatos à soltura, afinal a relação de proximidade e dependência de seres humanos  pode prejudicar os comportamentos naturais dos animais. Eles precisam demonstrar aversão ao ser humano e também  serem capazes de encontrar seu  próprio alimento e recursos para sobrevivência. Quanto mais tempo um espécime passa sob condições de “animal doméstico”, ou seja, em cativeiro, recebendo alimentação e cuidados externos, mais difícil será seu retorno à natureza.

 

Apesar das dificuldades,é possível, porém, recuperar este instinto natural. Existem casos de macacos-prego, por exemplo, que após serem colocados em grupos, conseguem aprender comportamentos naturais da espécie, mesmo vivido parte de sua vida sozinho, em situação doméstica. Claro que o tempo de cativeiro influencia nessa capacidade de assimilação.

 

Para perder esta proximidade com humanos, a observação dos animais muitas vezes é acompanhada apenas através de câmeras. Às vezes, são feitas algumas intervenções agonísticas no processo de reintrodução: no caso de aves,, uma técnica realizada pelos biólogos envolve entrar nos recintos e correr, fazendo barulhos altos, no intuito de causar sustos e, assim, associar a figura humana a ‘perigo’.

 

– O sucesso na alimentação dos animais também precisa ser considerado. No caso de carnívoros como onças, é essencial que elas sejam capazes de capturar presas vivas dentro do recinto. Para animais frugívoros é necessário apresentar uma variedade de frutas e folhas que esteja de acordo com a oferta natural da região da soltura, e que serão influenciadas pelas estações do ano.

 

A soltura de animais em números

 

Segundo o Ibama, os 24 Cetas distribuídos pelo Brasil recebem, em média, mais de 50 mil animais por ano. As aves são a classe predominante de animais, correspondendo a cerca de 75% do total. O Ibama promoveu a devolução para a natureza de cerca de 11 mil animais silvestres no ano de 2021.

 

No estado de São Paulo, de acordo com o Relatório de Qualidade Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, em 2022 somavam-se 32.211 animais em Áreas de Soltura e Monitoramento, dentre os quais 31.862 são aves.

 

Neste relatório também foi apresentado um gráfico que resume a destinação de fauna silvestre apreendida entre os anos de 2017 e 2021. Destaca-se que cerca de 37% dos animais são libertados em seu habitat natural, enquanto 12% dos animais acabam sob a guarda doméstica provisória dos autuados.

 

Quando o destino não é a soltura

 

Os animais que não são considerados aptos à soltura são encaminhados a instituições como zoológicos, criadouros comerciais, mantenedores, criadouros científicos, onde serão acolhidos e viverão em cativeiro. No caso de um animal exótico, isto é, espécie que não faz parte da fauna nativa brasileira, ele não poderá ser solto na natureza, e precisará viver em cativeiro.

 

Outro destino, apesar de controverso, pode ser a volta do animal ao dono original. Como a Lei Ambiental tem o propósito de proteger o animal, o STJ tem admitido a manutenção em ambiente doméstico de animal silvestre que já vive em cativeiro há muito tempo. No entanto, isso não descriminaliza a prática, ou seja, o tutor irá responder civil, penal e administrativamente, ainda que tenha o animal sob seus cuidados.

 

Portanto, fica o lembrete: jamais adquira animais silvestres pensando em “legalizá-los”, pois isso acarretará em problemas jurídicos, além de alimentar a demanda do tráfico de animais.

 

Sabendo o tamanho das consequências inerentes aos animais retirados da natureza por conta do tráfico, devemos reforçar que essa atividade precisa acabar. Toda a sociedade pode contribuir para o combate ao tráfico ajudando com denúncias e, principalmente, não comprando animais silvestres!